De São Tomé a Fred: assim é se nos parece
Houvesse no século 15 uma bebida que reunisse limão e saquê no mesmo gole, o jovem Caravaggio, ou apenas Michelângelo, como se apresentava às moçoilas, distenderia um músculo. Famoso pelo ritmo de quem saía dia sim, outro também em busca de mulher, confusão ou ambas as aventuras, preferencialmente, Caravaggio também atravessou a vida reconhecido pela obra artística fundamentalmente religiosa. Um dos mais aliciantes quadros do pintor, A incredulidade de São Tomé, traz o apóstolo a escrutinar as feridas de Jesus como modo de comprovar a ressurreição. É a Bíblia, claro, e não o quadro de Caravaggio, que reforça o rótulo de São Tomé, aquele que precisava ver para crer. Mas mal não faria à reputação do apóstolo se Caravaggio ou qualquer artista retratasse outra passagem bíblica. Quando os discípulos resistem à decisão de Jesus de retornar a Judeia, por exemplo, é Tomé quem lidera os reticentes:
“Vamos todos, pois poderemos morrer com Ele”.
Baita diferença.
Os “Tomés” são reais em igual proporção — xis e ípsilon. Qual deles entra(ou) para a história é loteria, conveniência ou (normalmente) uma mistura dos dois ventos.
Caso ninguém encarne a barriga de Renato Gaúcho ou a curva de Petkovic, parece pouco provável que o Campeonato Carioca deste ano tenha outro quadro barroco que não os atletas de Fla e Flu “amordaçados” no clássico de domingo. O esboço até reflete uma realidade. A punição dada a Luxemburgo, supostamente a mando da Federação de Futebol do Rio, é um desatino. Na mesma medida que abjetas são a expulsão de Fred e qualquer eventual gancho ao atacante do Fluminense. Mas trata-se da realidade xis.
Na ípsilon, Luxa e Fred esperneiam para se desvencilhar dos esparadrapos ante as câmeras, mas cada um, a sua maneira, sabe que essas tintas ajudam a embaçar outras realidades. Luxemburgo já notou que o invencionismo da vez, Cirino como centroavante, revelou-se uma tolice. O time atua melhor com um nove de ofício, ainda que esse nove seja Alecsandro. Quando o Brasileirão chegar, ninguém lembrará disso com devida clareza — afinal, não há razão para se achincalhar os amordaçados. Do lado do Flu, ao matar no peito o papel de mártir, Fred representa a salvação de um time consistente como crepom molhado. Assim, em vez de questionar por que a equipe arrisca ficar sem jogar até 9 de maio, caso não passe às semis do Carioca, o torcedor tricolor pode brincar de voduísmo com um boneco do Eurico Miranda.
Que a luz nas molduras erradas, porém, não iluda ninguém quanto à federação. A entidade presidida por Rubens Lopes, a.k.a. Rubinho, que vangloria-se de torturar a galinha da ninhada de ouro, já embolsou R$ 812 mil só com a bilheteria dos clássicos da primeira fase. Quase o dobro do que lucrou o Fluminense nos duelos contra os grandes (R$ 491 mil). Desses mais de R$ 800 mil, o Flamengo, sozinho, foi responsável por 40% do valor. Ainda que não tivessem o menor interesse, o time de Luxa passou um cheque de R$ 328 mil à entidade, e o de Fred, um de R$ 145 mil — isso sem contar os jogos das semis e da final, que devem render mais R$ 1,2 milhão à Ferj.
Como as baladas de Caravaggio, o quarteto tradicional que embarca no Carioca joga dia sim, outro também em busca do título, de uma desculpa ou de ambos, preferencialmente. Fla e Flu já alcançaram 50% do objetivo. E, ao contrário de São Tomé, poderão contar a história, lá no fim, pela conveniência. E não à mercê da loteria.
Esta coluna é originalmente publicada às terças no Correio Braziliense