Em campo, a distorção da realidade

Alexandre Botão
3 min readFeb 24, 2015

O norte-americano Robert Friedland investe na indústria de mineração desde os anos 1980. Bom para ele. Em 25 anos, o sujeito amealhou cerca de US$ 2 bilhões (dois Sílvio Santos no auge) e fundou três empresas. Antes de colher os frutos dessa decisão, Friedland colhia maçãs. Só melhora: colhia maçãs numa fazenda hippie. Foi para lá que ele arrastou Steve Jobs nos anos 1970 e dividiu com o fundador da Apple duas ideias: um chazinho sempre ajuda na busca espiritual e o campo de distorção da realidade costuma convencer (quase) qualquer um de (quase) qualquer coisa.

Campo de distorção da realidade é um termo que Jobs e a Apple espanaram sem querer. A grosso modo, assim: Jobs era tão fantasioso no discurso que a realidade já não se aplicava ali. Nem a ele nem à Apple nem ao futuro que, sejamos justos, eles construíram juntos. O custo, porém, é uma moeda de dois lados, como sempre. Encantados com o truque ilusionista, os fãs não enxergariam mais a realidade, e consumiriam qualquer coisa. Tem ali seus nacos de verdade.

Não que eu lembre do 7 x 1 como se fosse ontem. Lembro como se fosse hoje — 7 x 1, perceba, o único placar autoexplicável dos mais de 2.200 anos de história do futebol. Mas parece memória solitária. A reação de atletas e integrantes da comissão técnica da Seleção Brasileira à derrota soou (e ainda soa) tão impactante quanto o estapeamento público em Belo Horizonte. O mundo viu um jogo; eles, certamente, outro. A cada entrevista plástica, jurava estar no país dos Murtosas. Isso até a aparição de dona Lúcia: tolinho, o país era só o da piada pronta mesmo.

Em meio aos bailes pré-carnavalescos deste fevereiro, essa hipermetropia ficou mais evidente. Após derrota do Grêmio para o Veranópolis, em casa, Luiz Felipe Scolari abandonou a partida cinco minutos antes do fim e justificou: "Mais vergonha que isso é impossível passar". Certamente desconheço a relação custo-prejuízo que se estabelece na cabeça de Felipão, mas não parece tarefa complicada ilustrar "mais vergonha que isso".

Dois dias depois, o tabloide alemão Bild desengavetava prosaica entrevista com Dante, zagueirão do Bayern e do 7 x 1 (no futuro, todos os jogadores daquele dia serão categorizados como Fulano, ex-Bayern, ex-7 x 1; Beltrano, ex-Flamengo, ex-7 x 1…). Em dado momento, Dante choraminga:

"O que está acontecendo é injusto. Desde a semifinal da Copa, as pessoas me tratam com menos respeito".

Para sorte da dupla Scolari/Dante, o carnaval atravessou o samba do mimimi doido e ninguém deu muita atenção. A reação dos dois, porém, flutua no tal campo da distorção da realidade. No acaso de esbarrar com Felipão na fazendinha hippie de Friedland, ele é capaz de te convencer que a Copa não foi aqui: Mineirão? Lamento, enganado. E de que o jogo não teve aquele placar. Perdemos por 1 x 0, último minuto. Uma bobeira no fim, a tal "pane". Ou ainda de que saímos de cabeça erguida do Mundial depois de massacrar a Holanda por 3 x 0 na decisão do terceiro lugar.

Ali, entre um beberico e outro no chazinho da busca espiritual, é verdade, a vida de Dante vem sendo "injusta". E, sim, é mesmo pouco provável que haja "vexame maior" do que perder para o Veranópolis. Ainda que o Veranópolis, em momento algum dos seus 23 anos de existência, tenha sido pateticamente goleado. Algo como, sei lá, um exemplo aleatório, 7 x 1.

Esta coluna é originalmente publicada às terças no Correio Braziliense

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Alexandre Botão

Two decades of hardcore journalism in a past life; now Digital Media PhD candidate @ University of Porto, coffee taster and vinyl aficionado